Artigo: ‘Somos todos Profetas’

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O Tribuna Livre recebeu, por e-mail, o seguinte artigo escrito pelo médico Ilson Peixoto (*), vereador pelo PT de Angra dos Reis. Pela sinceridade das opiniões, no momento em que vivemos, julguei oportuna a sua publicação.

Somos Todos Profetas

Estava refletindo sobre os acontecimentos desse final de ano em nossa cidade e logo depois vieram as mortes no terremoto no Haiti. Lugares com grande grau de vunerabilidade conforme os indicadores que se apresentaram, como, por exemplo, em Angra, a alta taxa de urbanização provocada pelo modelo de crescimento adotado, principalmente a partir dos anos 60 e, no Haiti, uma população buscando dias melhores depois de centenas de anos de exploração colonial.

Li dois textos de pessoas muito respeitadas em suas áreas, José Fernando Eberhardt e Frei Beto que me reapresentaram o Profeta Amós, que viveu e profetizou no Tempo dos reis Ozias e Jeroboão, dois anos tremor de terra em Israel.

Tomei a liberdade de fazer uma colagem que agora apresento a vocês:

Versado em política e relações internacionais, graças ao trabalho de comercializar queijos, lã e couro nos principais mercados da região, Amós deixou o reino do Sul, onde vivia, e dirigiu-se ao Norte. Indignado frente a tanta desigualdade, denunciou os que “vendem o justo por dinheiro e o necessitado por um par de sandálias” (2,6), ou seja, juízes e fiscais que aceitavam subornos para aplicar multas que resultavam no confisco da terra dos camponeses.

 Os governantes “em seus palácios entesouram violência e opressão, e não sabem viver com honestidade” (3,10).

Amós não tergiversava com as palavras. Denunciava os abastados que “deitam-se em camas de marfim, esparramam- se em cima de sofás, comendo cordeiros do rebanho e novilhos cevados em estábulos, cantarolam ao som da lira, bebem canecões de vinho e usam os mais caros perfumes” (6,4-6). No comércio, “diminuem as medidas, aumentam o peso e viciam a balança” (8,6). Os agiotas, “no templo de seu deus bebem o vinho dos juros” (2,8).

“Assim me fez ver: Eis que o Senhor estava de pé sobre um muro e tinha na mão um fio de prumo. E o Senhor me perguntou: “Que vês, Amós?” Eu respondi: “Um fio de prumo”. O Senhor disse: “Eis que vou meter um fio de prumo no meio de meu povo, Israel; não tornarei a perdoá-lo”(7,7-8).

Profeta não é aquele que adivinha ou prediz acontecimentos futuros, e sim alguém que aponta para um ideal a ser buscado. Para isso o profeta denuncia os erros e males da sociedade, apontando a necessidade de mudança de rumo (conversão) para que se possa atingir tal objetivo. Assim como o comandante de um navio que perdeu seu rumo, determina que seja feita uma conversão na rota, para que possa ser retomado o roteiro previsto, de igual modo o profeta percebe que a sociedade está desencaminhada na busca de seu ideal, devendo assumir uma mudança radical, para poder recuperar o caminho correto.

A missão profética se caracteriza, portanto, por esta dupla dimensão: a denúncia e o anúncio. A simples denúncia dos erros de uma sociedade e dos desmandos de seus dirigentes não levaria a nenhuma mudança, trazendo tão somente frustração e revolta estéril. O anúncio de um ideal a ser construído, por outro lado, não passará de utopia se não forem corrigidos os erros existentes e para isso é necessário que alguém tenha a coragem de denunciar os males que devastam a sociedade. Como dizemos popularmente, é necessário que alguém ponha o dedo na ferida.

É importante fazer uma clara distinção entre denúncia e crítica. Criticar é muito fácil. Denunciar é difícil. Criticar não compromete. Denunciar compromete. Criticar não constrói, não gera transformação social, não aponta caminhos. Denunciar pressupõe, como complemento, anunciar uma nova realidade a ser construída na medida em que as pessoas se aprumem – para usar nossa figura – possibilitando a construção de uma nova sociedade.

O profeta tem consciência de que esta face de sua missão – a denúncia – é difícil e geralmente malvista e incompreendida pela maioria das pessoas, principalmente pelos mais poderosos. Por isso, humanamente falando, o profeta gostaria de fugir dessa responsabilidade, mas ele se sente chamado a esta vocação de uma maneira tão forte, que não tem como fugir. Um dos grandes profetas bíblicos, Jeremias, expressa isso de uma maneira linda, comparando o chamado à missão ao amor que une duas pessoas. “Tu me seduzistes, Senhor, e eu me deixei seduzir” (Jer 20, 7a). Não nos iludamos, porém, com uma visão romântica. Jeremias fora preso ao tronco e açoitado.

Cansado de ter que denunciar a violência e opressão, é tentado a omitir-se: “Quando pensava: ‘Não me lembrarei dele (de Deus), já não falarei em seu nome’”, mas logo constata que não consegue fugir de sua missão: “então sentia em meu coração um fogo devorador” Jer, 20, 9

O próprio Jeremias, porém, assim como Amós e outros profetas, deixa muito claro que tentou de todas as maneiras fugir desta missão. O chamado, contudo, foi mais forte. Quem é tocado pelo amor de Deus está indelevelmente marcado e não tem como fugir desse amor responsável e comprometido.

Amós, objeto deste singelo trabalho, também deixa bem claro que, ao contrário daqueles que assumem uma carreira de profeta, fazendo disso um meio de vida, vivendo junto aos poderosos e desfrutando das riquezas e bem-estar que tal estilo de vida lhes proporciona, ele é um vaqueiro e cultivador de sicômoros e vive modestamente desta profissão (Am 7, 14). Não foi por sua vontade e sim porque o Senhor o tirou de suas lides diárias, enviando-o a profetizar, que ele assume essa vocação. Mas ele assume como uma tarefa a ser cumprida, mesmo com todos os riscos que isso lhe acarreta. Cumprida a missão, Amós volta para sua vida singela de vaqueiro e cultivador de sicômoros, deixando muito claro que este é seu meio de vida. Alguém que faz da missão o seu meio de vida, dificilmente resistirá à tentação de acomodar as coisas, de modo a não perder o seu sustento.

Muitos profetas – entre eles Amós – partem de coisas simples da vida para proclamar sua denúncia e/ou seu anúncio. Trata-se de saber “ler” a realidade do mundo que nos cerca. É o que Jesus chama de “sinais dos tempos”. Ele critica os seus conterrâneos, que não sabem mais ver os sinais dos tempos. Não podemos ficar esperando que tenhamos uma visão, para só então percebermos a necessidade de assumirmos nossa missão profética. E nem pensemos que os profetas tinham essas visões, sabendo o que viria a acontecer. Os profetas tinham seus olhos, ouvidos, mentes e corações abertos para ver e entender os sinais dos tempos nas pequenas coisas diárias.

Vendo o trabalho de um pedreiro, que alinha sua parede com o fio de prumo, Amós percebe a importância de conclamar a sociedade a se reconstruir, para não ser destruída, a exemplo de uma parede torta que é derrubada. Vendo um cântaro quebrado, ele proclama que a sociedade será esfacelada por não estar mais cumprindo sua missão. Cruzando o caminho com um camponês que volta para casa com o cesto cheio de morangos recém colhidos, grita aos seus conterrâneos que seus dias estão contados e sua vida será  ceifada.

A mensagem de Amós se apresenta como um não claro e forte ao tipo de sociedade vigente. Denuncia os juízes porque condenam injustamente os pobres; os poderosos porque esmagam os mais fracos; o povo em geral porque se afastou do ideal e compromisso que havia assumido como povo eleito. É um profeta que não mede as palavras. Chama, por exemplo, de vacas as mulheres que ostentam luxo e riqueza à custa da exploração dos pobres, afirmando que como tal serão tangidas para a morte.

Amós, falando em nome de Deus, repudia com veemência os cultos que não são expressão de vida: “Odeio, desprezo vossas festas… Afasta de mim o ruído dos teus cantos”  5, 21 e 23. Por outro lado, o Profeta tem como missão interceder junto a Deus pelo povo: “Senhor Deus, pára, eu te peço! Como poderá  Jacó (o povo) subsistir? Ele é tão pequeno!” 7, 5.

Amós criticava aqueles que enchiam a boca de discursos políticos e religiosos e, no entanto, permaneciam indiferentes ao sofrimento do povo. Para ele, tudo aquilo era “tão absurdo como arar o mar com bois ou encher de pedras a pista e esperar que os cavalos corram” (6,12).

Espero sinceramente que a exemplo do profeta Amós nossos governantes reconstruam nossa cidade com  sob novos valores e referenciais.

(*) Ilson Peixoto é médico, funcionário da rede pública municipal de Saúde de Angra dos Reis. Ex-secretário municipal de Saúde e ex-superintendente da Fundação Eletronuclear de Assistência Médica, ocupa, desde 2009, uma cadeira na Câmara Municipal de Angra dos Reis, onde integra a Comissão de Meio Ambiente da Casa,

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