Angrenses em partidos de esquerda foram monitorados durante a ditadura

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Mais 50 anos ainda hão de se passar e talvez o Brasil não conheça com riqueza de detalhes toda a história que envolve o período de governo militar. Entre 1964 e 1985, militares das três Forças sucederam-se no comando do país e instituíram mecanismos de vigilância para monitorar grupos resistentes, oposicionistas ou mesmo apenas aqueles que pensavam diferente. Na semana passada, o Tribuna Livre teve acesso e publicou trechos de um documento do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), o braço de investigação do governo, em que as atividades de militantes definidos como ‘de esquerda’ de Angra dos Reis aparecem detalhadas e catalogadas durante o período que sucedeu à criação do Partido dos Trabalhadores (PT) no Estado, em janeiro de 1982.

— O PT tem como objetivo a ‘tomada do poder’ e recebe apoio do clero progressista e de ex-militantes comunistas — enfatiza o documento intitulado de ‘Infiltração Comunista nos Partidos Políticos – Diretórios do PT do RJ e ES’ (foto abaixo).

Mais à frente no mesmo relatório, os funcionários do SNI relatam ainda a existência de 18 diretórios organizados do PT no Estado em 1982. Um deles é o de Angra dos Reis, que aparece a partir da página 10, seguido dos nomes dos 12 primeiros integrantes da direção municipal.

Alguns dos citados são conhecidos da política angrense e até já tiveram trajetória partidária dentro e fora do PT. Um dos mais notórios é o próprio ex-presidente do PT/Angra, o lavrador Manoel Morais da Silva, ex-militante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e falecido em 2019. E há também personagens que ainda estão em atividade no cenário político local, exercendo inclusive relevância.

Um exemplo é o ex-vereador e ex-presidente da Câmara Municipal de Angra, José Antônio de Azevedo, que encabeça a lista do SNI em 1982. Ele era o tesoureiro do PT de Angra dos Reis naquele ano. Até hoje, no entanto, ele não sabia que seu nome estava num relatório do Serviço de Informações dos militares.

— Nunca tinha visto nenhum documento deste tipo. Mas a gente desconfiava que havia monitoramento porque no nosso grupo víamos as pessoas perdendo emprego sem motivo e era muito estranho. O normal mesmo era que as pessoas que tinham atividade política fossem monitoradas, seja pelo SNI, seja pelas Forças Armadas e o Cenimar (Centro de Informações da Marinha), no caso de Angra. A gente tinha um pouco de preocupação com isto sim — lembra José Antônio.

Mais à frente, José Antônio acabou por afastar-se do PT, tornou-se advogado militante e manteve-se na política. Foi secretário municipal de Agricultura no final dos anos 80 e acabou sendo eleito vereador pela primeira vez em 2008 pelo PCdoB. A também ex-vereadora Lia Aguiar aparece no relatório dos militares, ao lado de outros militantes que ainda estão no PT como Luís Carlos de Moura e Paulo Neves Barbosa, guarda-portuário aposentado. Lia estava na primeira direção do PT em Angra mas não quis comentar a ‘descoberta’.

Fraco — Após mais de 40 páginas listando todos os diretórios municipais do Rio e do Espírito Santo em atividade na época, os responsáveis pelo relatório resumem dizendo que o Partido dos Trabalhadores representava, na ocasião, um ‘risco para o regime militar’ embora o partido pudesse ser considerado ainda ‘fraco’ fora da cidade do Rio de Janeiro. Além dos militantes de Angra, nomes como os do ex-governador Anthony ‘Garotinho’ Matheus e do ex-deputado federal Jorge Bittar estão no levantamento de lideranças do PT no Rio.

Em Angra, seis anos depois do relatório, na primeira eleição direta para prefeito, em 1988, o PT venceria a disputa com o primeiro prefeito eleito pela legenda no Estado, o dentista Neirobis Nagae (1989/92) (foto), que viria a ser sucedido em seguida por mais dois ex-prefeitos do PT entre os anos 1993 a 2000.

História de Angra é marcada pelos governos militares

Os anos em que o Brasil foi governado por militares das três Forças marcam também o período em que Angra dos Reis testemunha o seu maior ciclo de desenvolvimento e expansão da malha urbana e ocupação demográfica.

Entre 1960 e 1980, a cidade deixa de ser uma ‘vila’ muito semelhante ao centro histórico de Paraty para se tornar o objeto dos planos de crescimento do período conhecido como Brasil Grande. Não sem causar, é claro, enormes alterações sociais e convulsões políticas. É nesta época que surgem a rodovia Rio-Santos (1975), o terminal de petróleo da Ponta Leste (1976), os grandes empreendimentos de turismo e as duas primeiras usinas nucleares do país (1984) (foto).

Enquanto isso, em 1982 (época do relatório do SNI), as grandes discussões dos fundadores do PT/Angra e dos movimentos sociais ativos na cidade eram a volta das eleições diretas para prefeito e os problemas agrários causados pela ação de grileiros em terras de camponeses e caiçaras, inclusive na Ilha Grande. Registre-se que a ocupação dos morros do Centro da cidade remetem a este período, iniciadas a partir da expulsão de caiçaras de suas terras de origem, especialmente na Ilha Grande.

— Angra não elegia seu prefeito na época porque aqui era considerado como ‘área de segurança nacional’. Os prefeitos eram indicados pelos militares e o governador, estes também indicados pela cúpula do governo federal. A gente queria poder votar e lutava por isso — lembra José Antônio.

Em 1985, conta o ex-vereador, um grupo de angrenses procurou o então candidato a presidente Tancredo Neves (MG), no Rio de Janeiro, para lhe entregar um documento pedindo a volta do direito ao voto. Pelo menos 36 entidades, ele cita, incluindo os sindicatos da época, assinaram o pedido.

— Na ocasião o doutor Tancredo disse que a eleição em Angra era algo ‘líquido e certo’, o que acabaria acontecendo menos de três anos depois — diz José Antônio.

As ocupações de terra que se sucederam à abertura da Rio-Santos, em 1975, também dominaram as discussões políticas no início dos anos 80. Empresas e empresários ricos passaram a comprar terras próximas à rodovia por preços baixos e, em alguns casos, houve expulsões e conflitos com pescadores e agricultores. A região onde hoje está a Japuíba (foto) começa a ser ocupada nesta época, dando origem a uma luta pela terra encampada pela Igreja Católica e por movimentos sociais.

Guerrilha — O jornalista Elio Gaspari relatou no livro ‘A ditadura escancarada’ que as matas de Angra, possivelmente a região onde hoje está o Ariró, teriam abrigado ainda um pequeno núcleo de guerrilheiros dispostos à luta armada contra os militares, isso no final dos anos 60. O projeto, porém, não teve sucesso. A guerrilha mais famosa do país, a do Araguaia, foi dizimada em 1974 o que resultou na morte de 50 dos seus 80 integrantes.

Nota: Após a publicação desta reportagem, o Tribuna Livre recebeu vários outros relatos de moradores de Angra que foram importunados ou levados a ‘prestar esclarecimentos’ em instalações militares por conta de suas atividades de natureza social ou política entre os anos 1970 a 1988.

Publicado antes na edição impressa do Tribuna Livre (nº 275)

Fotos: Reprodução / Divulgação

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